Apesar das diversas mudanças na política racial, às mulheres negras
continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é
considerado um assunto sério. Insistem em se aproveitar da
insegurança que nós mulheres negras sentimos com respeito a
nosso valor na sociedade de supremacia branca!
Nas manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o
cabelo, quer dizer, para alisar os nossos cabelos. Os cheiros de óleo
e cabelo queimado misturavam-se com os aromas dos nossos
corpos acabados de tomar banho e o perfume do peixe frito.
Não íamos ao salão de beleza. Minha mãe arrumava os nossos cabelos. Seis filhas: não
havia a possibilidade de pagar cabeleireira. Naqueles dias, esse processo de alisar o
cabelo das mulheres negras com pente quente (inventado por Madame C. J. Waler) não
estava associado na minha mente ao esforço de parecermos brancas, de colocar em
prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca. Estava associado
somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. Chegar a esse ponto de poder
alisar o cabelo era deixar de ser percebida como menina (a qual o cabelo podia estar
lindamente penteado e trançado) para ser quase uma mulher. Esse momento de transição
era o que eu e minhas irmãs ansiávamos.
Fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade. Era
um momento exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam bem)
podiam se encontrar em casa ou no salão para conversar umas com as outras, ou
simplesmente para escutar a conversa. Era um mundo tão importante quanto à barbearia
dos homens, cheia de mistério e segredo.
Tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa
identidade e o mundo eram abandonadas momentaneamente, antes de serem
reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança.
Eu queria essa mudança mesmo sabendo que em toda a minha vida me disseram que eu
era "abençoada" porque tinha nascido com "cabelo bom" – um cabelo fino, quase liso –,
não suficientemente bom, mais ainda assim era bom. Um cabelo que não tinha o "pé na
senzala", não tinha carapinha, essa parte na nuca onde o pente quente não consegue
alisar. Mas esse "cabelo bom" não significava nada para mim quando se colocava como
uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra.
Eu regozijei de alegria quando a minha mãe finalmente decretou que eu poderia me
somar ao ritual de sábado, não mais como observadora, mas esperando pacientemente a
minha vez. Sobre este ritual escrevi o seguinte:
Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um símbolo
de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo íntimo. É
um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres.
É um gesto que mostra que estamos nos aproximando da condição de mulher [...] Antes
que se alcance a idade apropriada, usaremos tranças; tranças que são símbolo de nossa
inocência, juventude, nossa meninice. Então, as mãos que separam, penteiam e traçam
nos confortam. A intimidade e a sina nos confortam.
Existe uma intimidade tamanha na cozinha aos sábados quando se alisa o cabelo,
quando se frita o peixe, quando se fazem rodadas de refrigerante, quando a música soul
flutua sobre a conversa.
É um instante sem os homens. Um tempo em que trabalhamos como mulheres para
satisfazer umas as necessidades das outras, para nos proporcionarmos um bem-estar
interior, um instante de alegrias e boas conversas.
Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado racialmente,
era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa obsessão pelo
cabelo. Mesmo sabendo que as mulheres negras com cabelo liso eram percebidas como
mais bonitas do que as que tinham cabelo crespo e/ou encaracolado, isso não era
abertamente relacionado com a idéia de que as mulheres brancas eram um grupo
feminino mais atrativo ou de que seu cabelo liso estabelecia um padrão de beleza que as
mulheres negras estavam lutando para colocar em prática.
Esse momento é um marco histórico e ideológico do qual emergiu o processo de
alisamento do cabelo de mulheres negras. Esse processo foi ampliado de maneira tal que
estabeleceu um espaço real de formação de íntimos vínculos pessoais da mulher negra
mediante uma experiência ritualística compartilhada.
O salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um espaço em que as
mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias, atribulações, fofocas – um lugar onde
se poderia ser acolhida e renovar o espírito.
Para algumas mulheres, era um lugar de descanso em que não se teria de satisfazer as
exigências das crianças ou dos homens. Era a hora em que algumas teriam sossego,
meditação e silêncio. Entretanto, essas implicações positivas do ritual do alisamento do
cabelo ponderavam, mas não alteravam as implicações negativas. Essas existiam
concomitantemente.
Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o costume
entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura representa uma imitação
da aparência do grupo branco dominante e, com freqüência, indica um racismo
interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima.
Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e
alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um
reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados afros,
principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência cultural à
opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de negro(a).
Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens
negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao
cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da
sociedade.
Entretanto, quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança
revolucionária na sociedade, não se deu mais tanta atenção à relação política entre a
aparência e a cumplicidade com o segregacionismo branco, e aqueles que outrora
ostentavam os seus blacks começaram a alisar o cabelo.
Sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços das
pessoas negras por serem sujeitos que se autodefinem, as empresas brancas
começaram a reconhecer os negros, e de maneira especialíssima, às mulheres negras,
como consumidoras potenciais de produtos que poderiam ser subministrados, incluindo
aqueles para os cuidados com o cabelo. Permanentes especialmente concebidos para as
mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. Esses
permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e
ganâncias das comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras
que anteriormente colhiam benefícios materiais (ver Como o Capitalismo Desenvolveu a
América Negra, de Manning Marable, South End Pree).
O contexto do ritual havia desaparecido, não haveria mais a formação de vínculos íntimos
e pessoais entre as mulheres negras. Sentadas embaixo de secadores barulhentos, as
mulheres negras perderam um espaço para o diálogo, para a conversa criativa.
Desposadas desses rituais de formação de íntimos vínculos pessoais positivos, que
rodeavam tradicionalmente a experiência, o alisamento parecia cada vez mais um
significante da opressão e da exploração da ditadura branca.
O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam mudando
a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade de ter a
aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo, está relacionada
com um desejo de triunfar no mundo branco. Antes da integração, os negros podiam se
preocupar menos sobre o que os brancos pensavam sobre o seu cabelo.
Em discussão sobre a beleza com mulheres negras em Spelman College , as estudantes
falavam sobre a importância de ter o cabelo liso quando se procura um emprego.
Estavam convencidas, e provavelmente com toda a razão, de que sua oportunidade de
encontrar bons empregos aumentaria se tivessem cabelo alisado. Quando se pediam
mais detalhes sobre essa assertiva, essas mulheres se concentravam na conexão entre
as políticas radicais e os penteados naturais, seja com ou sem tranças. Uma jovem que
tinha o cabelo natural e curto falava até mesmo em comprar uma peruca de cabelo liso e
comprido na hora de procurar emprego.
Nenhuma das participantes pensava na possibilidade de que nós mulheres negras
éramos livres para usar os nossos cabelos naturais sem refletir sobre as possíveis
conseqüências negativas. Com freqüência, os adultos negros, os mais velhos,
especialmente os pais, respondiam negativamente aos penteados naturais. Contei ao
grupo que, quando cheguei em casa com o cabelo trançado logo após conseguir um
emprego em Yale, os meus pais me disseram que eu tinha um aspecto desagradável.
Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam
obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério.
Por meio de diversas práticas insistem em se aproveitar da insegurança que nós
mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade de supremacia branca.
Conversando com grupos de mulheres em diversas cidades universitárias e com
mulheres negras em nossas comunidades, parece haver um consenso geral sobre a
nossa obsessão com o cabelo, que geralmente reflete lutas contínuas com a auto-estima
e a auto-realizaçã o. Falamos sobre o quanto as mulheres negras percebem seu cabelo
como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um território que deve ser
conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher negra que deve ser
controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais aprendêssemos a
considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado não processado.
Muitas de nós falamos de situações nas quais pessoas brancas pedem para tocar o
nosso cabelo natural e demonstram grande surpresa quando percebem que a textura é
suave ou agradável ao toque.
Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de aço ou um
casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras
revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como
feio, como também atemorizante. Nós tendemos a interiorizar esse medo.O grau em que
nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos sentimentos gerais sobre o
nosso corpo.
Em nosso grupo de apoio de mulheres negras, Irmãs do Yam, conversávamos sobre
como não gostávamos de nossos corpos, especialmente nossos cabelos. Sugeri ao grupo
que considerássemos o nosso cabelo como se ele não fizesse parte do nosso corpo, mas
que se percebesse como algo separado, de novo um território que deve ser controlado,
domado.
Para mim era importante que fosse vinculada a necessidade de controlar o cabelo com a
repressão sexual. Tendo curiosidade sobre o que passavam as mulheres negras que
faziam chapinha ou que fizessem amaciamento, permanente ou outras químicas, quando
refletiam sobre a relação do cabelo alisado e a prática sexual, perguntei se as pessoas se
preocupavam com o cabelo delas, se temiam que seus pares tocassem os seus cabelos.
Sempre tive a impressão de que o cabelo alisado chama a atenção pelo desejo de que
permaneça no mesmo lugar. Não foi surpreendente que muitas mulheres negras
respondessem que se sentiam incomodadas se as pessoas se concentravam e davam
muita atenção aos seus cabelos, sentiam como se o seu cabelo estivesse desordenado,
fora de controle. Isso porque aquelas de nós que já liberaram o seu cabelo e deixamos
que ele se movimente na direção que ele queira, freqüentemente, recebemos comentários
negativos.
Olhando fotografias de mim mesma e das minhas irmãs de quando tínhamos o cabelo
alisado no segundo grau, percebi que parecíamos ter mais idade do que quando
deixamos o cabelo natural. É irônico viver em uma cultura que enfatiza tanto a
necessidade das mulheres serem ou parecerem jovens, mas por outro lado incentiva as
mulheres negras a mudarem os seus cabelos de maneira tal que parecemos ser mais
velhas.
No último semestre, estávamos lendo O Olho mais azul, de Toni Morrison, em uma aula
de Literatura. Pedi aos estudantes que escrevessem textos autobiográficos, que
refletissem sobre o que eles pensavam sobre a relação entre raça e beleza física. Uma
grande maioria das mulheres negras escreveu sobre os seus cabelos. Quando eu
perguntei isoladamente a algumas delas porque continuavam alisando o cabelo, muitas
atestaram que os penteados naturais não ficavam bonitos nelas, ou que demandavam
muito trabalho. Emily, uma das minhas favoritas, de cabelo curto sempre alisava, e eu lhe
questionava e desafiava, até que ela me explicou de maneira muito convincente que um
penteado natural ficaria horrível no seu rosto, que ela não tinha a fronte nem a estrutura
óssea apropriada.
No semestre seguinte, nos reencontramos e ela me contou que durante as férias tinha ido
ao salão fazer o permanente e, enquanto esperava, pensou sobre as leituras e as
discussões de sala de aula e percebeu que estava realmente muito incomodada e
amedrontada com a idéia de que as pessoas achassem que ela não seria mais atraente
se não alisasse o cabelo. Reconheceu que esse medo estava enraizado nos sentimentos
de baixa auto-estima. Decidiu fazer uma mudança e se surpreendeu, pois estava linda e
muito atraente. Conversamos bastante sobre como dói perceber a relação entre a
opressão racista e os argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos
outros de que não somos belos ou aceitáveis como somos.
Em inúmeras discussões com mulheres negras sobre o cabelo, ficou constatado um
manifesto de que um dos fatores mais poderosos que nos impedem de usarmos o cabelo
sem química é o temor de perder a aprovação e a consideração das outras pessoas. As
mulheres negras heterossexuais falaram sobre o quanto os homens negros respondem
de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado. Entre as
homossexuais, muitas afirmam que não alisavam o cabelo por uma reflexão de que esse
gesto estaria vinculado à heterossexualidade e à necessidade de aprovação do macho.
Lembro-me de ter visitado uma amiga com seu par, um homem negro, em Nova York , faz
anos, e tivemos uma intensa discussão sobre o cabelo. Ele se encarregou de me dizer
que eu poderia ser uma irmã excelente (bonita) se fizesse algo ("dar um jeito") com o meu
cabelo. Por dentro pensei que a minha mãe o tinha contratado. O que me lembro é do
espanto quando com calma e entusiasmo garanti que eu gostava do tato no cabelo não
processado.
Quando os estudantes lêem sobre raça e beleza física, várias mulheres negras
descrevem fases da infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a idéia de
ter cabelos lisos, já que estavam tão associados à idéia de essas serem desejadas e
amadas. Poucas mulheres receberam apoio de suas famílias, amigos(as) e parceiros(as)
amorosos(as) quando decidiam não alisar mais o cabelo. E temos várias histórias para
contar sobre os conselhos recebidos de todo o mundo, até mesmo de pessoas
completamente estanhas, que se sentem gabaritadas para atestar que parecemos mais
bonitas se "arrumamos" (alisamos) o cabelo.
Quando eu ia para a minha entrevista de emprego em Yale, conselheiras brancas que
nunca haviam feito nenhum comentário sobre o meu cabelo me animaram para que eu
não usasse tranças ou um penteado natural grande (black) na entrevista. Elas não
disseram "alisa o seu cabelo", sugeriam que eu mudasse o meu estilo de cabelo de modo
tal que parecesse ao máximo ao cabelo delas, indicando certo conformismo. Usei tranças
e ninguém pareceu notar. Quando fui contratada, não perguntei se importava ou não que
eu usasse tranças. Conto essa história aos meus alunos para que saibam que nem
sempre temos de renunciar a nossa capacidade de ser pessoas que se autodefinem para
ter sucesso no emprego.
Já percebi que o meu estilo de cabelo às vezes incomoda os estudantes durante as
minhas conferências. Certa vez, em uma conferência sobre mulheres negras e liderança,
entrei em um auditório repleto com o meu cabelo sem química, fora de controle e
desordenado. A grande maioria das mulheres negras que ali estavam tinham o cabelo
alisado. Muitas delas foram hostis com olhares de desdém. Senti como se estivesse
sendo julgada, como uma marginal, indesejável. Tais julgamentos se fazem
especialmente direcionado às mulheres negras nos Estados Unidos que resolvem usar
dreads. São consideradas, com toda razão, da antítese do alisamento, o que torna o seu
estilo uma decisão política. Freqüentemente, as mulheres negras expressam desprezo
por aquelas de nós que escolhemos essa aparência.
Curiosamente, ao mesmo tempo em que o cabelo natural é um motivo de desatenção e
desdém, somos testemunhas da volta da moda das pinturas, mechas loiras, cabelo
comprido. Em seus escritos, minhas alunas negras descreveram o uso de mechas
amarelas em suas cabeças quando eram meninas, para fingir ter o cabelo comprido e
loiro. Recentemente as cantoras que estão trabalhando para ser atrativas para a platéia
branca, para serem consideradas como artistas que ampliaram o público, usam implantes
e apliques para conseguir cabelos compridos e lisos. Parece haver um nexo definido entre
a popularidade de uma artista negra com auditórios brancos e o grau em que ela trabalha
para parecer branca, ou para encarnar aspectos do estilo branco. Tina Tuner e Aretha
Franklin foram percussoras dessa tendência, as duas pintavam o cabelo de loiro. Na vida
cotidiana vemos cada vez mais mulheres usando cada vez mais químicas para ter cabelo
liso e loiro.
Em uma de minhas conversas que se concentravam na construção social da identidade
da mulher negra dentro de uma sociedade sexista e racista, uma mulher negra veio até
mim no final da discussão e me contou que sua filha de sete anos de idade estava
deslumbrada com a idéia do cabelo loiro, de tal forma que ela havia feito uma peruca que
imitava os cachinhos dourados. Essa mãe queria saber o que estava fazendo de errado
em sua tutela, já que sua casa era um lugar onde a condição de negro era afirmada e
celebrada. Mas ela não havia considerado que o seu cabelo alisado era uma mensagem
para a sua filha: nós mulheres negras não somos aceitas a menos que alteremos nossa
aparência ou textura do cabelo.
Recentemente conversei com uma de minhas irmãs mais novas sobre o seu cabelo. Ela
usa tintura de cores berrantes em diversos tons de vermelho. No que lhe diz respeito,
essas escolhas de cabelo pintado e alisado estavam diretamente relacionadas com
sentimentos de baixa auto-estima. Ela não gosta dos seus traços e acredita que o estilo
de cabelo transforma a sua fisionomia. O que eu percebia era que a escolha dela na
realidade chamava mais atenção para a sua fisionomia e era tudo o que ela pretendia
ocultar.
Quando ela comentou que com essa aparência ela recebia mais atenção e elogios, sugeri
que a reação positiva podia ser resposta direta da sua própria projeção de um alto nível
de auto-satisfaçã o. As pessoas podem estar respondendo a isso e não à tentativa de
ocultar ou mascarar o seu fenótipo. Conversamos sobre as mensagens que estava
mandando para as suas filhas de pele escura: que elas certamente seriam aceitas se
alisassem os seus cabelos!
Certo número de mulheres afirmou que essa é uma estratégia de sobrevivência: é mais
fácil de funcionar nessa sociedade com o cabelo alisado. Os problemas são menores; ou,
como alguns dizem, "dá menos trabalho" por ser mais fácil de controlar e por isso toma
menos tempo. Quando respondi a esse argumento em uma discussão em Spelman
College , sugeri que talvez o fato de gastar tempo com nós mesmas cuidando de nossos
corpos é também um reflexo de uma sensação de que não é importante ou de que nós
não merecemos tal cuidado. Nesse grupo e em outros, as mulheres negras falavam de ter
sido criadas em famílias que ridicularizavam ou consideravam desperdício gastar muito
tempo com a aparência.
Independentemente da maneira como escolhemos individualmente usar o cabelo, é
evidente que o grau em que sofremos a opressão e a exploração racistas e sexistas afeta
o grau em que nos sentimos capazes tanto de auto-amor quanto de afirmar uma presença
autônoma que seja aceitável e agradável para nós mesmas. As preferências individuais
(estejam ou não enraizadas na autonegação) não podem escamotear a realidade em que
nossa obsessão coletiva com alisar o cabelo negro reflete psicologicamente como
opressão e impacto da colonização racista.
Juntos racismo e sexismo nos recalcam diariamente pelos meios de comunicação. Todos
os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de que não seremos
bonitas e atraentes se não mudarmos a nós mesmas, especialmente o nosso cabelo. Não
podemos nos resignar se sabemos que a supremacia branca informa e trata de sabotar
nossos esforços por construir uma individualidade e uma identidade.
Como nas lutas organizadas que aconteceram nos anos 1960 e princípios da década de
1970, as mulheres negras, como indivíduos, devemos lutar sozinhas por adquirir a
consciência crítica que nos capacite para examinar as questões de raça e beleza e pautar
nossas escolhas pessoais de um ponto de vista político.
Existem momentos em que penso em alisar o meu cabelo só por capricho, aí me lembro
que, mesmo que esse gesto pudesse ser simplesmente festivo para mim, uma expressão
individual de desejo, eu sei que gesto semelhante traria outras implicações que fogem ao
meu controle. A realidade é que o cabelo alisado está vinculado historicamente e
atualmente a um sistema de dominação racial que é incutida nas pessoas negras, e
especialmente nas mulheres negras de que não somos aceitas como somos porque não
somos belas.
Fazer esse gesto como uma expressão de liberdade e opção individual me faria cúmplice
de uma política de dominação que nos fere. É fácil renunciar a essa liberdade. É mais
importante que as mulheres façam resistência ao racismo e ao sexismo que se dissemina
pelos meios de comunicação, e tratarem para que todo aspecto da nossa autorepresentaçã
o seja uma feroz resistência, uma celebração radical de nossa condição e
nosso respeito por nós mesmas.
Mesmo não tendo usado o cabelo alisado por muito tempo, isso não significa que eu era
capaz de desfrutar ou realmente apreciar meu cabelo em estado natural. Durante anos,
ainda considerava isso um problema. Ele não era natural o suficiente, crespo o necessário
para fazer um black interessante e decente, o cabelo era muito fino. Essas queixas
expressavam a minha continua insatisfação. A verdadeira liberação do meu cabelo veio
quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei como era.
Só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam dizer
sobre o meu cabelo. Só nesses últimos anos foi que eu sentir consecutivamente o prazer
lavando, penteando e cuidando do meu cabelo. Esses sentimentos me lembram o
aconchego e o deleite que eu sentia quando menina, sentada entre as pernas de minha
mãe, sentindo o calor do seu corpo e do seu ser enquanto ela penteava e trançava o meu
cabelo.
Em uma cultura de dominação e antiintimidade, devemos lutar diariamente por
permanecer em contato com nos mesmos e com os nossos corpos, uns com os outros.
Especialmente as mulheres negras e os homens negros, já que são nossos corpos os que
freqüentemente são desmerecidos, menosprezados, humilhados e mutilados em uma
ideologia que aliena. Celebrando os nossos corpos, participamos de uma luta libertadora
que libera a mente e o coração.
Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y Artista de Cuba, janeiro-fevereiro de 2005. Tradução do
espanhol: Lia Maria dos Santos. Retirado do blog coletivomarias.blogspot.com/.../alisando-o-nossocabelo.
html
Fonte: Criola
Conheça Bell Hooks
AfroBeijos Até o próximo post!
Nenhum comentário:
Postar um comentário